domingo, 19 de janeiro de 2014

Medusa



Me lembro bem daquele dia...

Estava ofuscado pela luz do sol que arranhava as folhas das árvores, naquele ponto de ônibus. Por algum motivo qualquer o ônibus que eu esperava demorou mais que de costume. Me estressei um pouco, mas logo passou, quando um senhor de seus oitenta e tantos anos e cabelo grisalho me encarou rapidamente com os olhos do século passado. Me peguei sorrindo.

Lá estava ele, o ônibus, nem cheio nem vazio, apenas ele mesmo. Não sei porque, mas senti um mal-estar. Acreditei ser um pré-sentimento, mas talvez fosse apenas o calor.... Poupar-te-ei das reflexões feitas ao longo do caminho naquele transporte público. Enfim, depois de muito sacolejar, o ônibus finalmente me deixou no meu destino.

Entrei na biblioteca e o sininho preso à porta denunciou a minha chegada. Inevitavelmente cumprimentei a moça de cabelos loiros e desgrenhados da recepção, que se autodenominava bibliotecária. Não me lembro do nome dela. Era um nome comum, apesar de ser próprio, isso era certo. Acho que ela me convidou para sair. É certo que nos conhecíamos há dois anos, tempo em que frequento a biblioteca, mas só. Ela nunca passou da moça de cabelos loiros e desgrenhados da recepção que se autodenominava bibliotecária.

Recusei cordialmente o pedido, alegando ter que preparar as aulas dos meus alunos. Ela apenas corou levemente ou então estava gripada. No fim, não importa os meios.

Eu tinha um motivo para ir lá sempre, motivo esse que não era só o grande e maravilhoso acervo de livros. O meu motivo vinha às terças.


Ela vinha sempre às terças, exatamente às 19h11. Ela tinha uma pontualidade quase divina e isso era uma das coisas que me fascinava. Eu sempre chegava uma hora antes desse horário, para evitar contratempos, afinal, eu sou uma pessoa prevenida. Encarei o relógio: 18h34, então peguei um livro qualquer (não porque não estava com vontade de ler, mas porque especialmente nesse dia eu não queria distrações) e aguardei ansiosamente a chegada do meu motivo, enquanto folheava aleatoriamente as páginas daquele livro do qual não me recordo o nome...

Encarei o relógio e então ele me encarou de volta. 19h11. Como sempre, o sininho foi ativado e então ela entrou. Nessa hora o mundo girou em câmera lenta e pude ver detalhadamente o incrível movimento que o cabelo dela fazia quando o vento batia e ela se movimentava. Os olhos dela perscrutavam o local com uma ânsia um tanto diferente das outras vezes, até que eles encontraram os meus. Confesso, caro leitor, confesso, mas por confessar não faça mal juízo de mim... confesso que senti o meu corpo tremer de insegurança, uma sensação já conhecida e ativada toda vez que ela chegava.

Ela sentou-se na mesa a minha frente, bem de frente para mim, como sempre. Pegara um livro e começara a ler, sem perder mais tempo. Durante esses dois anos aprendi a observar e conhecer o gosto que ela tinha por livros. Ela lia muito e muito rápido e às vezes fazia algumas anotações. Ela gostava de se vestir particularmente de forma neutra, sem chamar atenção, mas era impossível ela não chamar minha atenção. Era aquele tipo de mulher que se guarda e projeta uma imagem límpida e imaculada, mas que guarda um ímpeto dentro dos olhos, que só os conhecedores conhecerão. É isso. Tudo o que sei dela. Parece pouco, mas foi o suficiente para eu sofrer de uma paixonite aguda e sem cura, que mais parecia um monstro de três cabeças, cada cabeça se devorando e nascendo no lugar mais duas cabeças. Não sei quantas cabeças o monstro chegou a ter, no final das contas, pois as perdi. E não me julgue por amar tanto e conhecer tão pouco. O amor tem lá suas dádivas, exigências e compensações. Não cabe a nós discutirmos o assunto agora.

Uma coisa me tirou dos meus devaneios, ela olhou para mim com os olhos por cima do livro e deu um sorriso, tímido e acanhado, e logo desviou o olhar, colocando o cabelo atrás da orelha. E é claro que ela estava concentrada na sua leitura, pois sempre que ela colocava uma mecha do cabelo atrás da orelha, era porque estava especialmente interessada em algo que acabou de ler.

Era a primeira vez que ela me olhou daquele jeito, de forma acanhada. Ela sempre me olhara de uma forma que fazia com que eu me sentisse que estava no lugar certo, na hora certa. Mas com esse olhar novo, novas sensações surgiram e esse foi o estopim para tomar a atitude que há tempos planejava em segredo. Levantei-me e fui ter com ela.

- Oi.

Foi apenas o que eu disse. Eu havia planejado várias formas de me aproximar dela, imaginei situações e tudo o mais, mas não tinha parado para pensar no que falaria para ela, caso conseguisse chegar tão perto assim.

Ela abaixou o livro, mas não o largou. Indício de que achava que eu logo me afastaria. Os cabelos fugiram detrás da orelha e então ela me fitou nos olhos.
- Olá, Leonardo.

Ela sabe o meu nome??? Como isso era possível? Acho que a minha cara de interrogação foi suficiente para ela interpretar e responder a pergunta.

- Frequentamos a mesma biblioteca por anos e você fica surpreso por eu saber o seu nome?
- Não sei o seu. – arrisquei.
- Não sabe? – a expressão dela era de total perplexidade.
- Desde que a vi pela primeira vez fiquei me perguntando se era digno de saber o seu nome. Obviamente, ainda não encontrei a resposta. – a cara dela de surpresa passava de todos os limites da discrição. Isso inflou o meu ego.
- Pois bem, caro Leonardo, um dia você encontrará a resposta. – isso me deixou um pouco desconcertado. Mas resolvi contornar a situação.
- Esse livro aqui – eu disse colocando o livro citado na mesa – aborda melhor o assunto em que você está interessada. – ela novamente demonstrou grande surpresa. Assim que viu o título e o autor, deixou escapar um sorrisinho de satisfação por entre os dentes.
- Muito obrigada, caro. – eu não sabia porque ela me achava caro, mas achei o máximo e isso alimentou ainda mais a minha paixonite por ela.
- Posso me sentar? – perguntei já me sentando em seguida, com medo da recusa. – Tem um café aqui no quarteirão, o que acha de...
- Eu estou muito ocupada no momento, caro Leonardo. – ela me respondeu com uma falsa seriedade que beirava a ironia. Fiquei me perguntando se ela estava ou não sendo irônica e se aquela resposta era uma deixa para eu ir embora ou para irmos tomar um café. Novamente minha paixonite aumentou.
- Me desculpe, não quero atrapalhar. – resolvi entrar no jogo dela e fiz menção de me levantar, mas por sorte, ela se levantou comigo.
- Ora! Deixe disso, caro Leonardo! Se você me convidou é porque sou digna de ser convidada por você. Vamos lá!
- Por favor, me chame de Leo.
- Está bem... Leo.

Ela era a única pessoa que me chamou de Leonardo, isso me deixou muito curioso e instigado. Por fim fomos tomar café. Ela gostava do café bem forte e o meu não era tão forte nem tão fraco. Conversamos pouco, pelo menos verbalmente. Conversamos mais com o olhar e eu nunca soube exatamente o que o dela queria dizer. A nossa conversa não foi sobre o clima, como você, leitor, deve imaginar, mas devo confessar que também não foi uma conversa profunda. Estava mais para a superfície em alto-mar do que em superfície próxima a margem ou mais longe ainda da profundidade total ou parcial daquele mar. Resolvi contentar-me com a nossa conversa e fiquei satisfeito, pois isso mostrava mais dela do que ela mesmo imaginava. Tudo isso demonstrava a descontrariedade dela e ao mesmo tempo o cuidado para não revelar muito de si mesma. Seja porque ela era reservada ou seja porque ela queria que eu mesmo descobrisse, isso me agradava, de toda forma.

Quando eu não sabia mais como conduzir a conversa, ela remexeu na suas coisas e um pedaço de papel fugiu, voando até mim. Te amo, era o que dizia.

Vamos pular a parte que o meu mundo caiu, perdi todas as esperanças e me afoguei em um grande soluço que poderia ser o Juízo Final ou algo do tipo. É claro que eu sabia que existia a possibilidade dela ser comprometida, mas a euforia da conquista havia me dominado e camuflado esse medo. Pois bem, voltemos aos acontecimentos.

- Me desculpe, não sabia que você estava comprometida – disse isso por não saber exatamente o que dizer, mas senti que devia dizer algo.
- Há muitas coisas que você ainda não sabe de mim, Leo. – ela recolheu rapidamente o pedaço de papel e o colocou desajeitadamente de volta no lugar. – Preciso ir. – disse ela se levantando rapidamente e mal dando tempo para eu pensar em algo.
- Espere! Me desculpe se a desrespeitei de alguma forma. Apenas queria conversar com você, nada mais. – ela se deteve antes de ir embora, mas já perto da porta. Seus olhos sondaram os meus como um faixo de luz intensa procura os fugitivos da cadeia, intensa e desesperadamente. Ela não pareceu satisfeita com o que eu disse.

Então ela disse uma série de oito números aparentemente aleatórios e saiu correndo, como quem corre para pegar o ônibus que está prestes a perder, mas quem perdeu fui eu. Pelo menos essa era a sensação. Repeti aquele número para mim várias vezes mentalmente, peguei uma caneta com alguém próximo e escrevi na mão mesmo o que julguei ser o número dela.

Corri para casa e assim que cheguei não foi preciso dizer o que eu queria fazer, mas me detive, pois estranhei a reação dela e não sabia como proceder. Então decidi que esperaria a próxima terça e iria ter com ela novamente, mas ela não foi na terça, nem na próxima nem na seguinte. Não foi por três meses completos e por três meses eu sofri e me enchi de perguntas e dúvidas, vontades e ambições, medo e insegurança, até que decidi que era hora de ligar para ela.

- Leo? – como é que ela sabia que era eu?
- Como você sabia que era eu? – minha voz tinha insegurança, medo, desejos... mas estava decidida, apesar disso.
- Digamos que eu sei das coisas.
- Que bom, pois isso me evitou cogitar qual seria o nome que eu deveria chamar no telefone, já que ainda não sei o seu nome, ó Medusa!
- Medusa? – a voz dela foi de raiva e incredulidade.
- Te chamarei de Medusa então. Não por ter no lugar do cabelo serpentes, pois do contrário, o seu cabelo é lindo... mas te chamarei de Medusa por ter me transformado em pedra, naquela terça-feira e pedra sou desde então. – pensei ter ouvido um suspiro de alívio, de surpresa e de algo que não consegui identificar. Então a voz dela voltou a tonalidade normal.
- Não sei o que dizer, Leo. Aliás, você é a única pessoa que conseguiu fazer isso até hoje.
- Tente me explicar o que aconteceu.
- Digamos que... – ela hesitou e isso me feriu o coração, pois era a certeza de que ela tinha um companheiro – gostei muito do café. – não sei como ela fez isso, mas ela deixou um misto de sensações e sentimentos em mim. Entre eles a desesperança e a esperança ao mesmo tempo. Como isso era possível eu não sei explicar.

Desde então conversamos várias vezes ao telefone, vários dias. Às vezes ela ligava para mim também e o meu coração se enchia de algo que supus ser amor. Então uma vez liguei para ela e um homem antedeu. Então desliguei o telefone, em partes porque fiquei surpreso e em partes porque ainda não sabia que nome buscar. Não liguei mais para ela e ela então me ligou um mês depois. Um mês de eterno sofrimento...

- Alô?
- Fiquei sabendo que você me ligou. – suspirei de surpresa – E não me diga que não foi você, porque só você ligaria para cá e desligaria logo em seguida. Ainda mais depois que um homem atendeu.
- Seu namorado?
- O que acha?
- Sim e não.
- ...
- ...
- ...
- Por que demorou tanto para me ligar?
- Por que não me ligou de novo no dia seguinte?
- Porque um homem atendeu o telefone e não soube como agir desde então. E por que você demorou um mês inteiro para me ligar?
- Porque estava resolvendo algumas coisas. Te liguei para dizer que não teremos como nos falar por um tempo.
- Por quê? – eu novamente me engasguei no Juízo Final.
- Acabei de resolver umas coisas e vou para a França, passar um tempo lá.
- França? – é certo que eu tinha vontade de conhecer vários países, mas França não estava na lista, por nenhum motivo especial... – Para que lugar da França, por quanto tempo?

Então ela me deu o endereço e me pediu para encontrar com ela no dia e hora marcados e simplesmente desligou, sem ao menos me dar tchau.

França? A data marcada era três meses depois e se não me engano já estávamos há mais de um ano nessa amizade, por assim dizer. Ela me pediu para encontrá-la na França como se esse fosse o pedido mais simples e normal do mundo. É claro como água que não tive dúvidas quanto a ir encontrá-la. Os três meses que se seguiram foram para acertar algumas coisas no trabalho, dar uns telefonemas e comprar a passagem. Foram os três meses mais longos da minha vida.

Enfim cheguei na França, um dia antes da data marcada. Arrumei os detalhes do hotel, me acostumei com o fuso horário e me preparei para o dia seguinte. Exatamente na hora marcada ela apareceu. Estava a uns dois metros de distância e estacou diante de mim. Usava um vestido vermelho, particularmente espetacular e simples. Seus olhos, mesmo à distância, podia-se ver que brilhavam como o fogo e acertavam a minha alma como a espada mais forte é capaz de penetrar a armadura mais resistente do mundo, mas eu não tinha a intenção de resistir, eu precisava dela. E para minha surpresa ela novamente me surpreendeu. Começou a correr, mas não na minha direção e sim no sentido contrário. Ela estava correndo de mim! Demorou apenas uma fração de segundo para eu processar a informação e correr atrás dela. Corremos muito, passamos por ruas e mais ruas, até virarmos numa viela.

Ela tropeçou numa pedra e eu cheguei a tempo de segurá-la, coloquei-a contra a parede metafórica e real que estava diante de nós. E resolvi que aquela era a hora, de que eu não sei, mas era e eu não iria deixá-la passar, nem a hora nem a minha Medusa.

- O que você quer de mim? – ela perguntou.
- O que é que você quer de mim? – eu estava incrédulo – Você me chamou até a França e pergunta o que eu quero de você?
- Você veio. Isso é motivo de sobra para saber o que é que você quer de mim, afinal das contas.
- Eu não quero nada de você. Eu quero você.

Eu cuspi aquelas palavras desesperadamente e sem ar, como se essas fossem as últimas palavras ditas no último fôlego de um moribundo. Não sei se fiz certo, mas fiz.

Enquanto eu quase morria, ela se limitou a olhar para mim e rir nervosamente e simplesmente virar a face.

- Eu a amo! E saiba que eu nunca disse coisa mais tola e verdadeira em toda a minha vida.

Ela parou de tentar virar a face de lado e finalmente me encarou e me deu a atenção que eu merecia. Seus olhos estavam meio marejados como se aquele mar tivesse encarado uma tempestade e tanto e me afoguei naqueles olhos na esperança de ali ficar para sempre.

Então aconteceu o inesperado. O inesperado mais esperado para mim.

Ela me beijou. Para vocês leitores, basta saber que ela me beijou. Imaginem como quiserem a forma como me senti. Mas saibam que me senti realmente. E foi a coisa mais autêntica que aconteceu na minha vida. Me limito a dizer isso...

Com certa preguiça e mau gosto ela se soltou dos meus braços (sim, estávamos abraçados) e simplesmente saiu correndo.


Não sei se era possível uma mulher fazer um homem sentir coisas tão contraditórias e extraordinárias e todas elas ao mesmo tempo, mas ela conseguia e fez um ótimo trabalho por sinal.

O que era aquilo no chão? Sim! Não! Era um bilhete! Um bilhete da minha Medusa!

Caro Leo,

Sei que se chegamos a esse ponto, é porque você deseja imensamente ouvir certa coisa de mim, mas sinto dizer que se quer mesmo que eu diga isso, você terá que me fazer falar e esse não será um trabalho tão fácil como você pode imaginar. Você deve estar fazendo incontáveis perguntas e acha que eu tenho as inúmeras respostas e está certo! Mas ficará sem elas.
Foi bom ser sua amiga, mas agora digo adeus. Engraçado, não é? Adeus é uma palavra tão breve para um momento que dura a eternidade.

Adeus, meu caro Leo.
P.S.: não acredito que até hoje você não descobriu o meu nome!


Deixei-me cair de corpo e alma naquela viela. Nem acreditava que fui capaz de amar uma mulher quase desconhecida, de início, que sabia quase nada sobre a vida dela e que nem ao menos o nome ela foi capaz de me revelar! Nem ao menos eu sabia se ela era ou não comprometida mesmo, ela nunca deixou isso claro! E se isso tudo foi apenas paranoia minha?

Então, como um choque o nome dela veio até mim, flutuando e dançando. Eu sabia o nome dela! Precisava dizer isso pra ela! Então uma onda de tristeza me invadiu e a sensação de que o mundo estava me prensando foi intensa. Senti toda a pressão atmosférica naquele momento e uma grande sensação de claustrofobia me invadiu. Até que outro clarão me veio. Ela me ama! Ela disse isso na carta, a seu modo, mas me disse. Ela estava me incitando a ir atrás dela, mas como???



Essa é a história de como conheci a mulher mais incrível que já tive notícia.

Me esqueci de mencionar que atrás do bilhete tinha o endereço do hotel que ela estava hospedada? Sim...

O que aconteceu depois deixo que vocês imaginem e pensem o que quiserem. Não vou entrar em detalhes. Quis apenas contar como a conheci e contei. Ponto final, assim como o ponto que termina a frase.

E o nome dela? Vocês me perguntam. E eu nada respondo.

Pois dizem que quando sabemos o nome de algo, nome esse que mora no âmago da coisa, passamos a ter controle sobre ela.

Para vocês ela é a Medusa. A mulher que me transformou em pedra e me fez buscar o nome dela, lá na essência, onde achamos que nem o corpo nem a mente humana são capazes de se aventurar. Mas eu fui e espero que um dia vocês sejam capazes dessa tamanha façanha, pois então, caros leitores, saberão o que é realmente saber o nome da pessoa que amamos. Ou não. Vai saber!



Adeus.


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