sexta-feira, 15 de março de 2013

Sentido

Sentido. A palavra que eu via refletida no espelho naquele exato momento. Apesar de esperar que fosse o meu rosto amassado, com meus cabelos bagunçados e meus olhos que dizem: acabei de acordar.

Me assustei um pouco ao olhar no espelho e não me ver, o Sentido ocupava o espelho inteiro e não via nem a ponta das minhas orelhas. E isso foi muito estranho, ainda mais para quem acabou de acordar.

Eu estava cansado demais para pensar, indagar, imaginar ou até mesmo não fazer nada disso. Então resolvi voltar para a cama, mas não consegui dormir, como é de se imaginar. Quando se vê o Sentido, não é possível ter sonhos tranquilos, ou até mesmo dormir. Então fiquei incomodado. Não pelo Sentido em si, mas por ele não ter deixado eu dormir. Então resolvi ficar de mau-humor. Resolvi que aquele dia seria um dia ruim, de muito calor, com ônibus lotado e que eu iria encontrar pessoas supérfluas com as quais eu era obrigado a conviver.

E assim foi o meu dia.

No dia seguinte o mesmo se repetiu. Acordei, blá blá blá, fui ao banheiro e novamente vi o Sentido refletido no espelho, invés de ver meu rosto amassado, de quem acabou de acordar. Então novamente me vi de mau-humor.

E assim foram muitos dias. Muitos anos.

Acordar, blá blá, ônibus, blá blá, trabalho chato e sem motivações, blá blá, pessoas chatas no horário de almoço, blá blá, muito calor, blá blá, telefonemas de cobrança, blá blá, salário baixo, blá blá, muito calor, blá blá, pessoas chatas no ponto de ônibus que acham que tem o direito de conversar com você só porque o ônibus está demorando, blá blá, ônibus lotado, blá blá, pessoas no ônibus lotado que ficam te empurrando pra lá e pra cá só porque o ônibus está lotado, blá blá... casa bagunçada, blá blá, preguiça disso e daquilo, blá blá blá blá.
E assim foram muitos anos.

Até que um dia eu resolvi que não estava com preguiça de pensar. Então pensei que os espelhos normalmente refletem aquilo que têm para refletir.

Então comecei as especulações.

        Ou eu não tinha um rosto ou eu era o homem invisível ou eu era como a mula sem cabeça ou não havia nada em mim além do sentido... ou da falta dele.
        Foi então que eu percebi que o que eu via no espelho todas as manhãs não era o meu rosto, muito menos o Sentido, mas sim, a falta dele.

          Como é de se imaginar, fiquei alguns meses de cama.

          Como é que alguém pode viver sem Sentido? Sem o Grande Sentido?

        Simples, eu não vivia. Eu me arrastava, dizia que ‘sobrevivia’, mas nem isso, acho.

            ...

          Alguns anos depois resolvi que era hora de sair daquela cama, daquele estado deplorável e procurei um sentido para mim, para a minha vida.

        Fiquei de cama mais uns anos e acredite: esse período da procura é frustrante.

            ...
         Então pensei que se realmente existe o Sentido, ele deveria se apresentar para mim. Ele que viesse até a minha casa. Não vou ficar correndo atrás de nada nem ninguém, já passei da idade disso. E de fazer amizades, e de ir trabalhar, e de procurar o sentido, e de trabalhar e de procurar o sentido e de ter boa memória e de viver.

       Então para a minha sorte a morte veio ao meu encontro. Ainda bem, porque eu não iria gostar nenhum pouco se EU tivesse que ir ao encontro dela, já passei da flor da juventude e não tenho paciência para essas...