sexta-feira, 17 de maio de 2013

(Dom) Casmurro!




            Mais um dia, mesma rotina. Lá estava eu, acordando e me preparando para sair logo. Não estava bem. Não acho que era por causa da gripe, mas naquele momento era incapaz de sequer supor o motivo do meu mal-estar.
            Tive que correr para não perder o ônibus, mas perdi.
            Frustrada. Acontece.
            Algum tempo depois o próximo ônibus chegou. Entrei. Sentei-me. Esperei. Não sabia o que ou pelo que esperava, mas ainda assim, esperava. Inquietava-me. Então ele entrou.
            A princípio pensei que fosse outra pessoa, mas não... era ele mesmo. E para minha surpresa, ele se sentou no banco em frente ao meu, virando-se para me ver.
            -Oi. – ele disse um ‘oi’ seco, mas hesitante. Como se não soubesse se queria ou não me cumprimentar.
            -Oi. – eu respondi. Um ‘oi’ confuso e ao mesmo tempo tentando parecer o mais despreocupada possível. Não sei se funcionou.

A individualidade do homem (?)

Golconda, René Magritte, 1953.
"Como fica, então, a individualidade diante do peso da herança social? Haveria sempre o risco de o indivíduo perder sua liberdade e autenticidade? Martin Heidegger, filósofo alemão contemporâneo, alerta para o que chama de 'mundo do man': man equivale em português ao pronome reflexivo se ou ao impessoal a gente. Veste-se, com-se, pensa-se, não como cada um gostaria de se vestir, comer ou pensar, mas como a maioria faz. Os sistemas de controle da sociedade aprisionam o indivíduo numa rede aparentemente sem saída."


Fonte: Filosofando, introdução à filosofia. Maria Lúcia Aranha e Maria Helena Martins.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Lutar com palavras é a luta mais vã



Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça.


Carlos Drummond de Andrade, em 'Poesia Completa'

Somos irracionais

No meu tempo de escola primária, algumas crédulas e ingenuas pessoas, a quem dávamos o respeitoso nome de mestres, ensinaram-me que o homem, além de ser um animal racional, era, também o único que de tal fortuna se podia gabar. Ora, sendo as primeiras lições aquelas que mais perduram no nosso espírito, ainda que, muitas vezes, ao longo da vida, julguemos tê-las esquecido, vivi durante muitos anos aferrado à crença de que, apesar de umas tantas contrariedades e contradições, esta espécie de que faço parte usava a cabeça como aposento e escritório da razão. Certo era que o pintor Goya, surdo e sábio, me protestava que é no sono dela que se engendram os monstros, mas eu argumentava que, não podendo ser negado o surgimento dessas avantesmas, tal só acontecia quando a razão, pobrezinha, cansada da obrigação de ser razonável, se deixava vencer pela fadiga e mergulhava no esquecimento de si própria.
Chegado agora a estes dias, os meus e os do mundo, vejo-me diante de duas probabilidades: ou a razão, no homem, não faz senão dormir e engendrar monstros, ou o homem, sendo indubitavelmente um animal entre os animais, é, também indubitavelmente, o mais irracional de todos eles. Vou-me inclinando cada vez mais para a segunda hipótese, não por ser eu morbidamente propenso a filosofias pessimistas, mas porque o espetáculo do mundo é, em minha fraca opinião, e de todos os pontos de vista, uma demonstração explícita e evidente do que chamo a irracionalidade humana. Vemos o abismo, está aí diante dos olhos, e contudo avançamos para ele como uma multidão de suicidas, com a capital diferença de que, de caminho, nos vamos entretendo a trucidar-nos uns aos outros.

José Saramago, em 'Cadernos de Lanzarote (1993)'

Fernando Pessoa e a Opinião


A nossa crise mental

Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos — político, moral e intelectual?
A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico. Todo o povo se compõe de uma aristocracia e dele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só coletivamente é que o povo não é coletivo.
O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma coletividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita — como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova — o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima).
Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si-próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise.
As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 — fim da Renascença em nós e de nós na Renascença — deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto.
Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer.

Fernando Pessoa, em 'Portugal entre Passado e Futuro'