Sentido. A palavra que eu via
refletida no espelho naquele exato momento. Apesar de esperar que fosse o meu
rosto amassado, com meus cabelos bagunçados e meus olhos que dizem: acabei de
acordar.
Me assustei um pouco ao olhar
no espelho e não me ver, o Sentido ocupava o espelho inteiro e não via nem a
ponta das minhas orelhas. E isso foi muito estranho, ainda mais para quem
acabou de acordar.
Eu estava cansado demais para
pensar, indagar, imaginar ou até mesmo não fazer nada disso. Então resolvi
voltar para a cama, mas não consegui dormir, como é de se imaginar. Quando se
vê o Sentido, não é possível ter sonhos tranquilos, ou até mesmo dormir. Então
fiquei incomodado. Não pelo Sentido em si, mas por ele não ter deixado eu
dormir. Então resolvi ficar de mau-humor. Resolvi que aquele dia seria um dia
ruim, de muito calor, com ônibus lotado e que eu iria encontrar pessoas
supérfluas com as quais eu era obrigado a conviver.
E assim foi o meu dia.
No dia seguinte o mesmo se
repetiu. Acordei, blá blá blá, fui ao banheiro e novamente vi o Sentido
refletido no espelho, invés de ver meu rosto amassado, de quem acabou de
acordar. Então novamente me vi de mau-humor.
E assim foram muitos dias.
Muitos anos.
Acordar, blá blá, ônibus, blá
blá, trabalho chato e sem motivações, blá blá, pessoas chatas no horário de
almoço, blá blá, muito calor, blá blá, telefonemas de cobrança, blá blá,
salário baixo, blá blá, muito calor, blá blá, pessoas chatas no ponto de ônibus
que acham que tem o direito de conversar com você só porque o ônibus está
demorando, blá blá, ônibus lotado, blá blá, pessoas no ônibus lotado que ficam
te empurrando pra lá e pra cá só porque o ônibus está lotado, blá blá... casa
bagunçada, blá blá, preguiça disso e daquilo, blá blá blá blá.
E assim foram muitos anos.
Até que um dia eu resolvi que
não estava com preguiça de pensar. Então pensei que os espelhos normalmente refletem aquilo que têm para refletir.
Então comecei as especulações.
Ou eu
não tinha um rosto ou eu era o homem invisível ou eu era como a mula sem
cabeça ou não havia nada em mim além do sentido... ou da falta dele.
Foi então que eu percebi que o que eu via no espelho todas as manhãs não era o meu rosto,
muito menos o Sentido, mas sim, a falta dele.
Como é
de se imaginar, fiquei alguns meses de cama.
Como é
que alguém pode viver sem Sentido? Sem o Grande Sentido?
Simples,
eu não vivia. Eu me arrastava, dizia que ‘sobrevivia’, mas nem isso, acho.
...
Alguns
anos depois resolvi que era hora de sair daquela cama, daquele estado
deplorável e procurei um sentido para mim, para a minha vida.
Fiquei
de cama mais uns anos e acredite: esse período da procura é frustrante.
...
Então
pensei que se realmente existe o Sentido, ele deveria se apresentar para mim.
Ele que viesse até a minha casa. Não vou ficar correndo atrás de nada nem
ninguém, já passei da idade disso. E de fazer amizades, e de ir trabalhar, e de
procurar o sentido, e de trabalhar e de procurar o sentido e de ter boa memória
e de viver.
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